sábado, 26 de maio de 2012

o hOMEM dA bOSSA

POR CRISTIANO BASTOS - MAGAZINE BRAZUCA

Começo de noite no Copacabana Palace, Rio de Janeiro. Quando Sérgio Mendes desce para conceder a entrevista, pontualmente às 18h, os hóspedes do luxuoso hotel ainda  aproveitam a imensa piscina do restaurante Pérgula.

O pianista chega com os cabelos impecavelmente penteados para trás, úmidos do banho. Veste a combinação camisa branca e jeans. O perfume é uma fragrância masculina marcantemente cítrica.

Mendes trocou o Rio por Los Angeles há muito tempo.

Em 1961, estreou com o Sexteto Bossa Rio, com o qual gravou o disco Dance Moderno. Excursionando pela Europa e pelos Estados Unidos, registrou vários álbuns ao lado de músicos consagrados, como Cannonball Adderley e Herbie Mann.

Mendes mudou para os EUA em 1964, onde produziu dois álbuns sob a chancela do Brasil '64. Lá começou o grupo Sérgio Mendes & Brazil '66, o qual ganhou sucesso mundial com a versão de "Mas que nada", de Jorge Ben, embalada na batida da bossa nova.

Relaxado no hall do Copacabana Palace, o homem que, em 1967, tocou na Casa Branca para o presidente Nixon e ganhou o Grammy de melhor álbum de World Music faz um pedido simples: água com gás e pedras de gelo.

Seus olhos brilham quando fala de seu amor pela música brasileira.

Com o gravador desligado, diz que o segredo do sucesso é zelo: "É o músico estar a par de tudo que acontece". No meio da conversa ganhou um beijo na testa do filho Tiago, 14, roqueiro que chegou vestindo t-shirt dos Sex Pistols.

No fim da conversa recebeu telefonema de Gustavo, filho mais velho do casamento com a segunda esposa, Gracinha Leporace – sua cantora favorita, como frisou na entrevista.

Sérgio Mendes está no Brasil para o pré-lançamento do seu novo álbum de sucessos, Encanto.

A meta é suceder Timeless, que vendeu mais um milhão de cópias. Tal qual o anterior, Encanto é outra  caleidoscópica obra de Sérgio Mendes.

Tem participações de Herb Alpert, Lannie Hall, Natalie Cole e de brasileiros como Carlinhos Brown e Toninho Horta.

A recriação do maior hit de sua carreira, "The Look of Love", de Burt Bacharach - interpretada por Fergie, do Black Eyed Pea e produzido por will.i.am - é a promessa de estouro. A canção segue a fórmula de sucesso que reviveu "Mais que Nada" em Timeless.

Após lançar Encanto no Brasil, o pianista planeja sair em turnê pela Europa e Ásia. Depois quer voltar ao Cannegie Hall, palco no qual Sérgio Mendes pretende repetir o êxito de 40 anos atrás.

Há quatro décadas, o disco Herb Alpert Presents Sergio Mendes & Brazil 66 vendia milhões de cópias conquistando os Estados Unidos, a Europa e, por fim, o mundo.

Sua música influencia artistas pop "world music" como Beck e David Byrne e também jazzistas. É o caso de Winton Marsallis. Quando começou desconfiava que seria assim?

Sérgio Mendes - No inicío da carreira a gente nem pensa. É difícil prever o que vai acontecer – sempre é o elemento surpresa. O mais importante, nesse tempo todo, e até hoje, sempre foi a curiosidade, a vontade de fazer coisas diferentes e de trabalhar com músicos e cantores de várias partes do mundo. A disponibilidade de aprender e de trocar idéias musicais com outras pessoas sempre foi um traço de minha personalidade. No Brasil, tive vários grupos e acompanhei muitos cantores e cantoras. Fiz bailes em Niterói e toquei em boates do Rio. Foram experiências muito importantes para minha carreira internacional.

Qual o momento mais marcante do seu início nos Estados Unidos?

Mendes - Quando cheguei, em 1962, fui ao Birdland escutar o saxofonista Cannonball Adderley, meu ídolo. Cannonball me convidou para tocar com ele e eu, nervosíssimo, aceitei. No dia seguinte, me chamou para fazer um disco. A partir daí outros encontros aconteceram: Herb Alpert, Frank Sinatra, Fred Astaire. Há quatro anos, will.i.am aparece em minha casa com meus discos, se dizendo fã e que adorava minha música. É sempre renovador conhecer novos músicos e ter essa troca. Sempre me surpreendo quando Beck e bandas como Metallica, por exemplo, vem me dizer influenciados pelo "Sérgio Mendes Sound".

Nos álbuns Timeless e Encanto, o que os novos artistas acrescentaram aos velhos clássicos?

Mendes - O encontro desses jovens com meu trabalho – energia nova. Quando regravo "Mais que Nada", por exemplo, grande sucesso há 40 anos e de novo, em 2006, é sucesso mundial, tem muito a ver com a melodia de Jorge Ben e com a canção, que é eterna. Mas, também tem a ver com a cara nova que o Black Eyed Pea deu à música.

O que difere Timeless de Encanto?

Mendes - Timeless foi uma constelação de astros convidados: Marcelo D2, Erykah Badu, Justin Timberlake, Jill Scott, Stevie Wonder interpretando grandes melodias e os clássicos da música popular brasileira. Em Encanto tentei fazer algo mais "internacional". O repertório ainda são os clássicos da MPB cantados em inglês, português e castelhano. Encontrei o Giavanotti na Itália e fizemos "Lugar Comum", do João Donato, cantando em português; ele respondendo em italiano. Tem o jovem colombiano Ruanes, atualmente o maior cantor em língua espanhola. Fergie, que, diria, é a cantora mais popular do mundo. Decidi refazer "The Look of Love" - quatro décadas depois do sucesso seu estrondoso - com Fergie numa versão funk pancadão. "Água de Beber" virou rap com will e a participação de Toninho Orta. É um disco mais colorido, tem mais caras e lados. A idéia é a mesma de Timeless: colaboração criativa entre músicos de diversos lugares. "Encanto" é uma palvra linda: representa o charme, perfume e sensualidade da música brasileira.

Você foi um dos responsáveis pela popularização da música brasileira no mundo. Dá para explicar a atração exercida pela musicalidade do Brasil?

Mendes - É uma atração do mundo, não só dos Estados Unidos. O encontro de Stan Getz com Tom Jobim, João Gilberto e Astrude foi um momento único da nossa música. O interesse sempre existiu e continuou. O fenômeno Brasil 66 foi um caso disso. A atração aconteceu justamente por conta da originalidade, da sensualidade e, especialmente, pela força das grandes melodias que as canções têm.

Você acompanha a música brasileira feita hoje? Acha legítimas manifestações como o funk, por exemplo?

Mendes - Ouço o que me chega aos ouvidos. As pessoas me mandam muitos discos do mundo inteiro. Recebo coisas do Brasil, da Europa, da África. Estou sempre ouvindo, mas, hoje em dia, é impossível ficar a par de tudo o que está acontecendo. Estou sempre ligado. Tenho um filho de 14 anos e outro de 21. Prefiro não falar sobre isso porque vou acabar esquecendo de citar coisas muito importantes. O Brasil é uma usina de novas energias – inclusive, funk, rap e pagode vão nessa esteira. A diversidade é a coisa mais forte da música brasileira, não há dúvida.

Jorge Mautner escreveu, na edição pirata da Rolling Stone brasileira, em 1972, que Roberto Carlos foi o "primeiro ídolo pop panamericano", pois transitava por Cuba, México e países sul-americanos. Concorda com tal, visto que, na época, você também alcançava sucesso internacional?

Mendes - Concordo plenamente com Jorge Mautner – está certíssimo: Roberto Carlos é um artista da maior importância no mundo.

Encanto reúne vários convidados especiais. Como conseguiu juntar tantos nomes?

Mendes - O processo foi parecido com Timeless. Quando gravei, tinha ideia de quem gostaria que participasse. Eu telefonava para as pessoas perguntando se queriam fazer parte do projeto. A sorte é que todas quiseram.

Do lançamento e Oceano a Timeless passaram-se dez anos. Porque o grande intervalo entre um álbum e outro?

Mendes - Depois de Oceano fiquei sem idéias. Foi importante ter dado uma parada nas gravações para reformular a cabeça. Foi ótimo. Voltei aos estúdios renovado.

Como Herb Alpert ajudou em sua carreira?

Mendes - Ele foi muito importante. O Brasil 66 começou na sua gravadora, a A & M Records (Alpert & Moss), que muita gente pensava ser Alpert & Mendes. Infelizmente não era verdade (risos). Alpert me convidou para fazer parte do cast da gravadora, produziu meu primeiro disco e acabou casando com uma das minhas cantoras, Lannie Hall. Em Encanto, convidei Herb para tocar trompete e Lannie, para cantar. É uma amizade de mais de 40 anos.

Ainda lembra a sensação de tocar no célebre concerto da bossa nova no Carnegie Hall, há 40 anos?

Mendes - Foi uma experiência maravilhosa. Na época, eu tinha o grupo Bossa Rio. A idéia de chegar aos Estados Unidos, pela primeira, vez e tocar no Carnegie Hall era o sonho que se concretizava. Toquei com Tom Jobim e João Gilberto e depois conheci Stan Getz e Dizzy Gillespie. No dia seguinte fui ao Birdland conhecer Cannonball Adderley.

Qual a melhor recordação que gurda de sua carreira?

Mendes - Fiz duas turnês com Frank Sinatra: uma em 1968, outra em 1980. Rodamos o mundo todo e ficamos muito amigos. Eu abri os espetáculos de Sinatra com o meu grupo. Também trabalhei com Fred Astaire. Astaire dançou "The Look of Love" na entrega do Oscar de melhor canção, em 1968. Não levou o prêmio, mas, só vê-lo dançar, enquanto tocávamos, foi incrível. São esses percursos mavavilhosos que tive a sorte de ter.

domingo, 15 de abril de 2012

pEIXE vIVO

Romário já foi o melhor jogador de futebol do mundo. Hoje, fora do habitat, é um dos deputados federais de maior destaque em Brasília. Quantos gols mais ele ainda pretende marcar na vida?

POR CRISTIANO BASTOS
FOTOS: MURILLO MEIRELLES


Favela do Jacarezinho, zona Norte do Rio de Janeiro, meados dos anos 50. O rádio, aparelho sagrado nos lares brasileiros, está sintonizado no prefixo PRE-8, no programa César de Alencar, o mais ouvido do Brasil.

No horário das 15h, a grande atração era intelectual: o fenômeno "Romário, o Homem Dicionário", célebre pelo vasto vocabulário, que para amplificar o mistério em torno de si ornava a cabeça com turbantes indianos e se fantasiava com vestes exóticas.

A semana inteira, os ouvintes estudavam palavras difíceis para desafiá-lo.

Qualquer um do auditório podia perguntar: "Seu Romário, o que significa 'zíngaro'?"

Ele concentrava-se por instantes e respondia:

"Cigano, ou boêmio."

"Uma salva de palmas!", comandava Alencar. A claque delirava.

Outro desafiante tirava um papelzinho do bolso e investia:

"Me diga o que quer dizer 'helíaco'."

Em tom professoral, Romário respondia: "Diz-se do nascimento ou ocaso de um astro".

Ninguém jamais embolsou o polpudo prêmio que seria pago a quem apresentasse um vocábulo desconhecido para o craque das letras. Reza a história de que não houve sequer uma vez em que ele tenha errado. Romário era imbatível com as palavras.

Dono de espirituosas tiradas, o jovem Edevair de Souza Faria era tão fiel ao programa radiofônico quanto ao América Futebol Clube, seu time do coração. Recém-casado com Manuela Ladislau Faria, a dona Lita, ele buscava um nome importante para batizar o filho que se encaminhava. E não pensou duas vezes em batizar o rebento com o nome do ídolo do rádio.

Romário de Souza Faria foi escalado por "Papai do Céu" (como ele gosta de dizer) para entrar em campo no dia 29 de janeiro de 1966. E, tal qual seu homônimo, predestinava-se a acertar incontáveis vezes ao longo da vida. Mas, ao contrário do imbatível Homem Dicionário, a errar outras tantas também.

"Sou bem diferente do Homem Dicionário. Porque de vez em quando eu erro, né?", assume o baixinho, do alto de seu 1,69 m. Porém, não é preciso dizer que a fama do proverbial "peixe" foi bem mais longe.

Da Holanda ao longínquo Qatar, nos Emirados Árabes, o nome de Romário – e suas façanhas – correram o mundo. Apelidos não faltaram: "Gênio da Grande Área", "Reimário", "Romágico". Em 2001, sua marrentice foi satirizada na Escolinha do Professor Raimundo de Chico Anysio, com a paródia "Ramório".

Os fãs, para recordar os feitos heroicos nos 11 clubes para os quais o jogador emprestou sua arte (cronologicamente: Estrelinha, Vasco da Gama, PSV Eindhoven, Barcelona, Flamengo, Valencia, Fluminense, Al-Sadd, Miami, Adelaide United e, realizando o sonho do falecido pai, o adorado América, pelo qual disputou uma única partida), instituíram, em 11 de novembro de 2011, o "Romarian Day."

Atualmente fora dos gramados, palco habitado profissionalmente por mais de 20 anos, é no minado campo da política nacional que, até 2015, o deputado federal Romário disputará suas partidas. Em uma chuvosa tarde de terça-feira de março, ele está sentado relaxadamente em seu escritório abafado de 40 metros quadrados, no anexo da Câmara dos Deputados.

O número do gabinete (411) alude ao cabalístico 11 da camisa com que inúmeras vezes se sagrou campeão. Vestindo o amarelo da seleção, o centroavante – escudado pelo parceiro Bebeto – foi o expoente decisivo da conquista do tetra na Copa dos Estados Unidos, em 1994. Na estante no canto, descansa uma réplica da Taça Fifa que ele levantou em 17 de julho daquele ano.

Amaury Jr., veterano colunista televisivo, também está na sala, e quer saber de Romário se ele frequenta as baladas de Brasília. "Já tive bastantes fraquezas", ele confidencia.

Durante o expediente, de terça a quinta-feira e sem hora para terminar, o gabinete é assolado constantemente por políticos, representantes de entidades e toda sorte de pessoas em busca de algum tipo de apoio.

Pedem desde autógrafos, cessão de imagem, passagens e, se for possível, até dinheiro vivo. Em cima da mesa, uma pilha de objetos (livros, fotografias, fardamentos oficiais) o aguarda para que neles Romário eternize o autógrafo. A maior parte do material é relacionado ao Vasco, flâmula com a qual os torcedores mais o identificam.

O telefone toca intermitentemente. Uma das ligações, revela a secretária, é de Andrew Parsons, presidente do Comitê Paraolímpico Brasileiro. "Precisa urgentemente falar com o deputado", ela explica.

Coberta por fios prateados, a cabeça de Romário não esconde a calvície. Em 2007, quando atuava pelo Vasco, a queda de cabelo chegou a levá-lo à suspensão de 120 dias nos jogos do Campeonato Brasileiro. Tudo por causa da loção Propécia (para o combate da queda de cabelo), que contém a substância finasterida, proibida pelo Controle de Dopagem da CBF.

"Se [o remédio] fazia algum efeito era ao contrário, pois eu corria cada vez menos e fazia menos gols. Até brinquei, na época, que era o 'doping do Paraguai'", diz, acariciando a cabeça e esboçando um raro sorriso (na verdade, ele é “tímido”, garante a assessora).

Na ocasião, Romário está trajando um bem cortado terno Armani azul-petróleo riscado com listras brancas. Embora tenha cursado dois períodos de educação física na Universidade Castelo Branco (RJ), poucos sabem que ele também estudou Design de Moda na faculdade Estácio de Sá, visando ser "estilista de moda masculina e feminina".

É elegante e vaidoso, mas não se considera metrossexual. E, ainda que carregue marca de furo na orelha, ao menos na vida pública dispensou o clássico brinquinho. Ligeiramente caídos e avermelhados, os olhos estão sempre atentos, como se vigilantes, e a língua, levemente presa, permanece afiada. Romário atende o celular, fala rapidamente e, após desligar, volta-se em minha direção.

"O cara ligou pra avisar que hoje vai ter uma reunião pra decidir se vai ter uma reunião amanhã. Foda, né?"


*Leia a reportagem na íntegra.

rOLLING sTONE 67

quinta-feira, 8 de março de 2012

eLAS qUEREM mAIS pODER

No ano em que se completam oito décadas da instituição do voto feminino no Brasil, a presença de mulheres em cargos políticos ainda deixa a desejar


POR CRISTIANO BASTOS
ILUSTRAÇÃO: LÉZIO JÚNIOR


“Ô abre-alas/ que eu quero passar!” 


Até hoje ecoa o inesquecível refrão da primeira marchinha a estrear no Carnaval, composta por Chiquinha Gonzaga (1847-1935) em 1889, o ano da Proclamação da República.

De caráter simbólico, o hino realmente abriu alas: feminista, abolicionista e também a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil, Chiquinha morreu empunhando o estandarte da batalha pelos direitos autorais dos músicos.

Politicamente, ela pôs na rua a comissão de frente para as gerações de mulheres que a sucederam no tempo e na história.

No rastro do legado de Chiquinha, em 24 de fevereiro de 1932, as mulheres conquistaram o direito, até então somente masculino, de exercer a participação política como eleitoras e candidatas. E, um ano depois, escolheu-se por meio do voto a primeira deputada federal brasileira: Carlota Pereira de Queirós.

Antes disso, as mulheres eram consideradas "menores de idade", como os índios – sem direitos mínimos e elementares, como trabalhar fora de casa.

O cenário mudou radicalmente, em 2010, quando Dilma Rousseff tornou-se a primeira mulher presidente do Brasil. Mas nosso universo político continua a dever para o gênero feminino. É recente, na verdade, a "maioridade" da mulher nos meandros da política nacional.

O grande marco é de 24 anos atrás, na Assembleia Constituinte, que determinou a ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos da mulher.

Em 2012, as diferenças ainda gritam. As mulheres, as quais representam mais da metade do eleitorado brasileiro, possuem representações mínimas na Câmara dos Deputados, no Senado e nas assembleias legislativas.

Na Esplanada, devido à onipresença de Dilma, esse número é melhor, porém relativo: apenas 26% dos ministérios são administrados por mulheres em áreas importantes.

A seguir, seis convidadas especiais – três deputadas, uma senadora, uma prefeita e uma ministra – discorrem sobre a atual situação da mulher na política brasileira. Embora as opiniões toquem nas mais variadas feridas, todas elas concordam: é preciso, com sensibilidade, dividir o poder com os homens.


GLEISI HOFFMANN 
Ministra da Casa Civil

"A mulher só conquistou seu direito ao voto em 1932. Menos de 100 anos depois, temos na presidência da República uma mulher e o governo federal composto por um número significativo de mulheres. Considerando o espaço de tempo, podemos dizer que foi um avanço sem precedentes na história.

Do ponto de vista da representatividade da mulher, ainda estamos muito atrás. Somos mais da metade da população, mais da metade do eleitorado e temos sub-representação política. É por isso que buscamos, na reforma política, cota mínima de participação. Uma tentativa de acelerar a equidade de gênero.

Não podemos deixar de lembrar: é claro que, graças à participação da mulher na política brasileira, temas que dizem respeito às crianças, adolescentes, mulheres e idosos foram inseridos na pauta das ações do governo.

Aquela mulher que antigamente se encerrava na esfera doméstica hoje representa um diferencial na política brasileira. As questões que passam pelas mãos das mulheres acabam beneficiando toda a sociedade. Brigamos pelo direito a uma licença-maternidade e conquistamos, a duras penas, uma lei que nos protegesse da violência doméstica.

Até a mulher entrar na política, projetos de creches e de educação infantil não existiam. Hoje, o país oferece mais oportunidades para a mulher trabalhar fora de casa e poder compartilhar os cuidados com os filhos com as escolas e creches.

A mulher é uma figura do consenso, do diálogo. São valores femininos. Não digo que somos melhores nem piores do que os homens. Mas também não somos iguais. Não somos de entrar em disputas, só para brigar. Estabelecemos consensos, ouvimos, partilhamos.

Temos hoje à frente da nação um grande exemplo de uma mulher que faz a diferença. Uma pessoa forte, determinada e comprometida com o desenvolvimento do Brasil. Sabemos que manter o país na rota de crescimento traz inúmeros desafios. E a cada dia vemos as esferas de oportunidades se ampliarem com as ações conduzidas pela presidente Dilma.

Enfim, nós, mulheres, já conquistamos mais espaço e hoje temos voz na vida política. Nosso olhar feminino faz diferença. Diante das grandes conquistas e avanços proporcionados por nós, continuo defendendo a presença feminina no espaço público. Acredito que aumentando a participação da mulher na política brasileira os ganhos para o país serão maiores.


*Você lê essa reportagem na íntegra na edição 66 ou no site da Rolling Stone.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

lIÇÃO dE cASA pARA o fUTURO

Pela terceira vez, o Brasil lança um plano para exterminar o analfabetismo. As dificuldades, porém, vão muito além das salas de aula

POR CRISTIANO BASTOS
ILUSTRAÇÃO: LÉZIO JÚNIOR


Em 1962, ano em que o Brasil conquistava o bicampeonato mundial de futebol no Chile e os compositores Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes eternizavam “Garota de Ipanema”, o panorama educacional brasileiro, no cenário pintado pelo antropólogo Darcy Ribeiro, era "calamitoso".

Então ministro do presidente João Goulart, Ribeiro traçava o Primeiro Plano Nacional de Educação, o qual listava uma série de medidas emergenciais para salvar a educação no país. Entre outras ambições, ele desejava alfabetizar, até 1970, todas as crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos.

Na época, o Brasil amargava o pior índice de iletrados de toda a América Latina: um exército de 5,8 milhões de analfabetos – o que representava 39% de toda a população nacional. Mas um golpe de Estado, cujo comando militar tramava obscuros "planos", enterrou definitivamente o projeto dois anos depois.

Hoje, o Brasil é um dos motores econômicos do mundo, passou a ser a sexta economia global e, antes de 2015, deverá ultrapassar a França e garantir o quinto lugar (conforme as projeções do Fundo Monetário Internacional).

Com tanta pujança, é gritante, entretanto, a defasagem do sistema educacional, se comparado ao momento econômico vivido pelo país. De fato, ainda é impossível comparar a educação no Brasil com os níveis de formação profissional das nações mais desenvolvidas.

O setor já vingou inúmeras melhoras, mas os números continuam falando por si próprios.

É o que mostra a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2009, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo a qual 3,7 milhões de crianças e jovens (de 4 a 17 anos) estão fora da escola.

As estatísticas não são muito alentadoras. Por exemplo, caiu em apenas 0,3 ponto percentual a taxa de analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais. Em 2008, o índice foi de 10% e, em 2009, de 9,7% – no total, ainda há 14,1 milhões de brasileiros que não sabem ler nem escrever.

Para a superação dessas deficiências históricas, uma das propostas que poderá soprar ares renovados a esse panorama é o novo Plano Nacional de Educação (PNE), feito para vigorar no decênio 2011/2020.

Encaminhado pelo governo à Câmara dos Deputados por meio do projeto de lei 8035/2010, o projeto foi entregue, em Dezembro de 2010, ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo ex-ministro da Educação, Fernando Haddad.

A comissão especial que analisa o PNE em plenário marcou para este Fevereiro a apresentação do texto final, que deverá ser votado em março. Após a aprovação, segue para o Senado e, caso avance, vai para a sanção presidencial.

"Fizemos um projeto", explica Haddad, "com metas para serem aplicadas e honrarem a sociedade. Mas, se chegarmos a 2020 com metade delas não cumpridas, ele [o PNE] perderá credibilidade. Queremos aprovar um plano amadurecido e factível e exigimos um esforço adicional", conclama o ex-ministro, agora candidato à prefeitura de São Paulo, que recém-entregou o cargo ao titular da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante.


Você continua lendo esta matéria na edição 65 da Rolling Stone Brasil, Fevereiro/2012.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

o mAIOR pROBLEMA dE tODOS*

A corrupção faz parte da rotina da sociedade brasileira há mais de 500 anos. Será que um dia o país se permitirá extrair esse mal de suas entranhas? 

POR CRISTIANO BASTOS – ROLLING STONE 
ILUSTRAÇÃO: LÉZIO JÚNIOR

"Se há reis ladrões, é questão muito arriscada. Certo é que os há e que não furtam ninharias. Quando empolgam, são como as águias reais, que só em coisas vivas e grandes fazem presa".
Atribuída ao jesuíta Manuel da Costa (1601-1667), a obra A Arte de Furtar, de 1652, foi oferecida ao rei D. João IV e a D. Teodósio, o príncipe do Brasil. Seus manuscritos, como sugere o título, não ensinam a roubar.
Denunciam, todavia, que a malversação de dinheiro público era prática comum no Brasil Colônia – a corrupção veio a bordo das caravelas e ancorou-se na história do país desde o Descobrimento.
Em 1516, empossado capitão da Costa Brasileira, o lusitano Pero Capico foi enviado pela coroa portuguesa à novíssima terra com a missão de evitar desvio de direitos reais sobre o comércio de açúcar, pau-brasil e escravos.
A passagem é emblemática. Capico desembarcou pobre no Brasil e, dez anos depois, voltou rico a Portugal. Com muita ironia, o padre Antônio Vieira (1608-1697) também escreveu sobre os governantes coloniais:
"Eles [as autoridades] chegam pobres nas Índias ricas e voltam ricos das Índias pobres".
Passaram mais de 500 anos de história, mas o quadro ainda é, praticamente, o daqueles tempos. Se não piorado. A despeito da estabilidade econômica e dos inegáveis avanços sociais conquistados pelo Brasil, a corrupção continua reinando firme no "país do caixa 2". 
Em pouco mais de nove meses de mandato, a presidente Dilma Rousseff teve de nadar contra a corrente de indesejáveis crises políticas, em virtude de sucessivos escândalos motivados por denúncias de corrupção. Nessa gestação inicial, cinco ministros "bailaram". 
Último a entrar na dança, Pedro Novais (PMDB-MA), do Turismo, foi derrubado na chamada "Operação Voucher" deflagrada pela Polícia Federal (que prendeu mais de 30 pessoas acusadas de desviar R$ 3 milhões, dentre elas o secretário-executivo do Ministério, Frederico Silva da Costa). 
Novais sucumbiu após denúncias, entre outras, de que pagava empregados domésticos com dinheiro do Congresso Nacional. Sua bancarrota moral, porém, foram os R$ 2.156 que pediu de reembolso à Câmara dos Deputados para pagar a conta de um motel usufruído por ele em São Luís (MA).
Caíram antes dele os ministros Wagner Rossi (PMDB-SP, da Agricultura), Antonio Palocci (PT-SP, Casa Civil), Alfredo Nascimento (PR-AM, Transportes) e Nelson Jobim (PMDB-RS, Defesa). Importante observar que três deles pertencem ao principal partido da base aliada do governo, o PMDB. 
O único que não tombou pelos mesmos motivos foi Jobim, o qual, literalmente, "morreu pela boca" após "declarações polêmicas". A respeito do vendaval de escândalos que varreu a paz do primeiro ano de seu mandato, Dilma declarou que o real desafio de seu governo consiste em defender os interesses brasileiros – muito mais do que "solucionar as crises da Esplanada". 
"Meu maior objetivo é desenvolver o país e distribuir renda. O resto eu faço por 'ossos do ofício'. Prioridade são as condições de vida do povo. Faxina é contra miséria", declarou a presidente.
Ossos do ofício à parte, o custo médio da corrupção no Brasil é altíssimo. Tão elevado que daria para resolver o problema da miséria de uma vez por todas. Segundo estudo realizado em 2010 pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), financeiramente, esse "preço" é estimado entre 1,38% e 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB) do país.
Ou seja, de R$ 50,8 bilhões a R$ 84,5 bilhões. Com os R$ 50,8 bilhões (estimados em um cenário realista) se poderia, por exemplo, aumentar em 138,1% os quilômetros de rodovias brasileiras – as quais passariam, de acordo com a meta estabelecida no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), de 45 mil para 107,9 mil quilômetros.
O número de aeroportos, por sua vez, se elevaria de 20 para 327 unidades. Entretanto, a corrupção não é uma exclusividade brasileira. O Banco Mundial estima que US$ 1 trilhão seja tragado todos os anos pelos corruptos em escala planetária. 
Correspondente a 1,6% do PIB mundial em 2010 (US$ 63 trilhões), o valor supera em 43% o gasto dos Estados Unidos com armamentos (US$ 698 bilhões).
Paradoxalmente à guerra, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estima que US$ 30 bilhões por ano são suficientes para acabar com a fome de quase 1 bilhão de pessoas ao redor do globo terrestre.
Assim, uma "faxina mundial" em favor da moralidade poderia sumir com a miséria da face da Terra. A berrante diferença entre corrupção no Brasil e nos países mais sérios, contudo, é uma já velha e bastante conhecida: a impunidade.
*Você continua lendo esta matéria na edição 61 da Rolling Stone Brasil, outubro/2011

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

o cAMINHO dAS pEDRAS

Após anos batendo cabeça, o Governo Federal ainda luta para encontrar alternativas na guerra contra a incontestável epidemia do crack

POR CRISTIANO BASTOS - ROLLING STONE
ILUSTRAÇÃO: LÉZIO JÚNIOR


Brasília, 19h. No horário de pico, mais de um milhão de pessoas circulam diariamente pela rodoviária da capital federal. A Praça dos Três Poderes repousa metros à frente, emoldurada pela visão dos monumentais edifícios que guardam o Executivo, o Judiciário e o Legislativo – Palácio do Planalto, Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional, respectivamente.

Os arredores refugiam, também, a cracolândia mais movimentada do Plano Piloto. O conjunto arquitetônico projetado por Oscar Niemeyer, Patrimônio Cultural da Humanidade, não tombou imune à presença deste que hoje é, possivelmente, o mais agudo dos flagelos sociais brasileiros.

Valdeir Carlos Neves é mais uma dessas "almas químicas" cujas mãos brandem um cachimbo nos quatro cantos do Brasil. Na concretista paisagem, o rapaz baiano de 25 anos fuma crack escondido nas reentrâncias do Teatro Nacional, cara a cara com o poder. Consome mais de 20 gramas por dia.

"Em qualquer canto 'nóis' fuma”, conta, parecendo atribulado.

Ele tem a companhia de Juliana Soares da Silva, 18 anos, que saiu do interior de Goiás para perambular por Brasília atrás da pedra. Ela queima, literalmente, R$ 100 todos os dias, dinheiro que ganha à custa de programas, mas diz sonhar com um emprego.

"Quando a gente ocupa a cabeça com alguma coisa, não pensa em droga", diz. O vício, porém, tem apelo maior. Inquieta, a jovem avista um traficante e, sem paciência para a entrevista, corre ao seu encontro, aos gritos:

"Dá um oxi aí! Um real?"

O flagrante cenário, que não é exclusividade de Brasília, carrega simbologias preocupantes. A mais marcante delas é a inconcebível miopia do poder público diante de tão gritante problema social. Outra, de ordem econômica, escancara a facilidade de acesso que usuários de todas as idades e classes sociais têm ao devastador veneno.

Correndo paralelo à onda de corrupção que assolou o Brasil nos últimos meses, o crack também é uma "pedra no sapato" do Governo Federal. E não é de hoje. A epidemia vem anunciando-se há mais de duas décadas. Começou no governo de Collor (o primeiro registro oficial de uso da droga no Brasil data de 1989), instalou-se no período de FHC e consolidou-se nos anos Lula.

Cabe lembrar que, nas eleições presidenciais de 2010, o combate ao crack foi uma das grandes plataformas alardeadas durante a candidatura de Dilma Rousseff.

"Será uma luta sem quartel", a então candidata garantiu.

Em maio do ano passado, a promessa ganhou reforço fundamental do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, próximo ao fim de seu mandato, decretou o Plano Integrado para Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas.

Os R$ 410 milhões destinados ao plano foram repartidos entre os ministérios da Saúde, Justiça e Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Interministerial, a ação coliga três frentes: combate, prevenção e tratamento.

Mais de um ano depois, todavia, os resultados ainda são timidamente visíveis. Até o presente momento, para utilizar um jargão do meio, a estratégia não "decolou".

Vinculada ao Ministério da Justiça, a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), criada em 2004, desde abril vem anunciando a divulgação daquele que deverá ser o "maior estudo sobre usuários de crack do mundo".

Postergado, o levantamento deveria sair em junho, mas voltou a ser adiado. Agora sem data específica, a Senad promete sua publicação ainda para este ano. Realizado com 25 mil usuários de crack em todo o território nacional, o estudo vai traçar o mapa das principais cracolândias brasileiras.

A pesquisa custou R$ 6,9 milhões financiados pelo Plano Integrado e está sendo elaborada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com a Princeton University.

De acordo com a médica Paulina do Carmo Duarte, diretora da Senad, o objetivo é colher dados estatísticos reais das grandes cidades à zona rural. "Não temos, neste momento, nenhum número exato sobre o consumo de crack no país. O que há, até agora, são meras especulações", ela admite.

À época do lançamento do plano, Lula ainda observou a importância de se contar com números fidedignos sobre a epidemia: “Precisamos acabar com o ‘achismo’ e entender com precisão o problema do crack”, declarou.


*Você continua lendo esta matéria na edição 60 da Rolling Stone Brasil, setembro/2011

quinta-feira, 21 de julho de 2011

eU, cHRISTIANE f., 13 aNOS, dROGADA, pROSTITUÍDA...

Nova edição do notório best seller que chocou no final da década de 70

POR CRISTIANO BASTOS - ROLLING STONE

Não há como negar, entre o público, o mórbido fascínio exercido pelo gênero "literatura da adicção". Embora decadentes, livros autobiográficos, como Memórias Alcoólicas de John Barleycorn, de Jack London, e Junkie, de William S. Burroughs, são obras-primas estupefacientes.

Isto é válido para o best seller Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada, Prostituída... (Betrand Brasil), lançado originalmente em 1978, que agora chega à 51ª edição.

Vera Christiane Felscherinow comprou seu bilhete para o vício pagando apenas pelas drogas "triviais" – haxixe e LSD entre elas –, mas desembarcou na irreversível coqueluche europeia: a heroína ou, simplesmente, "H".

Seu debute foi após ver um show de David Bowie, que lançava na época o álbum Station to Station. Eu, Christiane F. é baseado em depoimentos dados pela adolescente alemã a Kai Hermann e Horst Rieck, repórteres da revista Stern.

Nessa nova tiragem, a capa é estampada, pela primeira vez, com uma foto da "lolita junkie". Para saciar a "fissura" dos curiosos, o volume traz retratos dos parceiros de pico de Christiane, incluindo até um ex-namorado.

O testemunho ainda choca, porém, perto da atual tragédia brasileira, refém da nefasta dobradinha crack/oxi, está mais para a fábula de "Cinderela do submundo".

terça-feira, 12 de julho de 2011

a eRA dOS eXTREMOS

Com discursos radicais e forte tendência ao conflito, políticos como Jair Bolsonaro ganham voz e colocam fogo nos debates ideológicos

POR CRISTIANO BASTOS - ROLLING STONE
ILUSTRAÇÃO: LÉZIO JÚNIOR

Desde que o Brasil restaurou a liberdade democrática, há 26 anos, o cenário da política nacional parece ebulir na intensidade de um vulcão que desperta em calorosa erupção. Como em nenhum outro momento da história, o debate nunca foi tão vasto, um sinal de que a democracia está amplamente assegurada.

Nos últimos tempos, respingando em todas as direções, à direita ou à esquerda, inflamáveis questões impregnaram a opinião pública e os noticiários - uma autêntica "fornalha ideológica" na qual ardem temas controversos da atualidade: homofobia, união homoafetiva, cotas raciais, religião, pena de morte.

E, em um déjà vu dos anos militares, até a tortura entrou em pauta.

Mas que novos ares são estes? Afinal, os tempos vivenciados pela política atual não são diferentes dos anteriores, nos quais a democracia reinou no Brasil.

Vale lembrar, contudo, que a política sempre foi o "reino do conflito ou do consenso", conforme reforça o cientista político Octaciano Nogueira, autor da obra Vocabulário da Política.

"Ou buscamos o consenso ou entramos em conflito. Todos gostaríamos de conceber a política como o reino do consenso e não como a predominância do conflito. O conflito, porém, é inerente à política."

Conflito é quase a palavra de ordem para o deputado federal Jair Messias Bolsonaro (PP-RJ), cuja popularidade foi alçada graças às suas extremadas declarações sobre tópicos polêmicos como homofobia, preconceito racial, tortura, pena de morte e militarismo.

Um militar da reserva, Bolsonaro alardeia abertamente, por exemplo, as "benesses" do golpe militar de 1964. Teria sido, a seu ver, um "glorioso período" da história do Brasil - "Vinte anos de ordem e progresso".

Tão anacrônico quanto o totalitarismo, o parlamentar advoga a favor do uso de tortura em casos de tráfico de drogas e sequestro. "O objetivo é fazer o cara abrir a boca", justifica. Mortalmente radical, por outro lado, é sua solução para crime premeditado: execução sumária.

Incontáveis são as controvérsias com as quais Bolsonaro se envolveu desde que entrou para a política, em 1988. Seu linguajar impetuoso não poupou a presidente Dilma Rousseff, o ex-Luiz Inácio Lula da Silva e, muito menos, o antecessor, Fernando Henrique Cardoso.

Quando FHC ainda estava no poder, em 2000, Bolsonaro disse que o ex-presidente estava "cometendo um crime" ao governar o Brasil da forma como fazia. Deveria, portanto, "ser fuzilado".

Hoje, o deputado afirma que é preciso analisar o contexto da época - e também levar em conta seu nacionalismo exacerbado:

"Quando FHC privatizou a Vale do Rio Doce, falei que, se vivêssemos num país sério, ele seria fuzilado".

Segundo ele, o lucro da empresa foi de R$ 50 bilhões em 2010. "O que a Vale produziu até hoje para o país? Somente buraco. Tira daqui o que temos de melhor, in natura, minerais, e vende a preço de terra no primeiro mundo."

Na cartilha educativa de Jair Bolsonaro, para "corrigir" filhos com tendências homossexuais, reza um antiquado método: as palmadas. De acordo com ele - que declarou preferir "ter um filho morto em um acidente a um homossexual" -, o propósito seria "mudar o filho gayzinho".

Como era de se esperar, a artilharia pesada fulminou como belicoso petardo entre defensores dos direitos humanos e associações LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). A despeito desse flagrante reacionarismo, é válido lembrar que nenhum político está na Câmara, no Senado ou na Presidência da República sem, antes, receber os votos dos cidadãos.

"Bolsonaro não sobressai por contribuições, grandes pronunciamentos ou pela defesa de reconhecidas ideias democráticas. Ele faz, justamente, o contrário", afirma o cientista Nogueira, para quem o deputado do PP "prega no deserto", ou seja, fala somente para um pequeno segmento de extrema direita.

terça-feira, 5 de julho de 2011

o cORAÇÃO dAS tREVAS

Uma das obras literárias mais influentes de todos os tempos ganha edição bilíngue

POR CRISTIANO BASTOS - ROLLING STONE

Ainda menino, o escritor anglo-polonês Joseph Conrad contemplou o mapa e decidiu, um dia, visitar as profundezas da então inexplorada África. Marinheiro na mocidade, em 1890 o escritor levou a cabo a promessa.

Destino: o Congo, no centro-oeste do continente.

Parte considerável dos romances de Conrad – tal qual as grandes obras do chamado "cânone ocidental" (Moby Dick, de Herman Melville, e Relato de Arthur Gordon Pym, de Edgar Allan Poe) – tem no mar sua abissal "personagem".

O Coração das Trevas, que agora ganha inédita versão bilíngue, porém, navega por vias fluviais. Pela voz do aventureiro Charles Marlow, seu alter ego, o escritor conta magistralmente uma história dentro da história.

Navegando pelas águas do mítico Rio Congo, a missão de Marlow é achar o paradeiro do senhor Kurtz, comerciante de marfim sumido no selvagem coração africano.

É o enredo-base "furtado" pelo cineasta Francis Ford Coppola, a partir do qual o cineasta filmou o inquietante Apocalypse Now, de 1979.

Célebre pela atuação de Marlon Brando como Kurtz, o filme transpôs a congolesa narrativa para o infernal território da Guerra do Vietnã. Não à toa, o livro é tido como uma das maiores obras da literatura universal.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

dOC rESGATA o cARISMA mAGNÉTICO dE lULA cÔRTES

POR PEDRO BRANDT - CORREIO BRAZILIENSE

Zé Ramalho se apresenta hoje em Brasília, no Açougue Cultural T-Bone. No repertório, músicas como Avohai, Frevo mulher, Admirável gado novo e Chão de giz, que ajudaram a fazer o nome do cantor paraibano a partir do final dos anos 1970.

O que muitos de seus fãs não sabem é que, anos antes, Zé já estava na ativa e tinha até gravado disco, o mítico Paêbirú, parceria com Lula Côrtes.

O álbum virou tema de documentário. Zé não quis participar (Paêbirú é um assunto que ele evita), mas aprovou sua produção. Lula Côrtes morreu sem assistir Nas paredes da pedra encantada, longa-metragem que investiga esse que é um dos mais raros discos brasileiros.

O LP duplo Paêbirú - Caminho da montanha do sol (1975) é o primeiro disco a levar na capa o nome do compositor de Avohai. Músico, poeta e artista plástico pernambucano, Luiz Augusto Martins Côrtes morreu em 26 de março, aos 61 anos, em decorrência de um câncer na garganta.

O filme ganhou sua primeira exibição pública em 30 de abril, em São Paulo, dentro da programação do In-Edit Brasil — 3º festival internacional do documentário musical.

Lula morreu em 26 de março, pouco mais de um mês antes da primeira exibição do documentário.

O Correio teve acesso ao filme (em uma versão ainda não definitiva, sujeita a ajustes), dirigido por Cristiano Bastos e Leonardo Bomfim. O documentário, além de abordar a feitura do disco - conversando com vários dos envolvidos, como o cantor Alceu Valença, o cartunista Lailson de Holanda, o artista plástico Raul Córdula e a cineasta Katia Mesel - tem na figura de Lula seu fio condutor.

E não teria como ser diferente. Com um carisma magnético, ele rouba a cena.

Rodado nas cidades pernambucanas de Olinda, Jaboatão dos Guararapes e Recife, e nas paraibanas João Pessoa e Ingá do Bacamarte, Nas paredes da pedra encantada é um road movie que captura muito do espírito da época em que o disco foi feito, em plena efervescência do udigrudi pernambucano.

Produzido com dinheiro do próprio bolso dos diretores (orçado em aproximados R$ 30 mil), o filme acompanha Lula de volta até a Pedra do Ingá, sítio arqueológico onde se encontram as misteriosas inscrições rupestres que inspiraram as letras do álbum — que apresenta em suas músicas uma rica combinação de ritmos nordestinos e rock psicodélico.

As premissas dos diretores resultaram em vários planos sequência, longos e detalhados depoimentos, que passeiam por temas como ecologia, arqueologia, contracultura, música e lisergia, permitindo ao espectador entrar na história sem pressa.

"Queríamos que o filme respirasse, fugisse de edições frenéticas, de ritmo videoclíptico. E que tudo nele fosse novo, sem imagens de arquivo — até porque elas não existem —, mostrando o que a gente viu", conta o jornalista gaúcho radicado em Brasília Cristiano Bastos.

"A ideia não era apenas entrevistar, mas olhar as pessoas. Como o Pennebaker em Don't look back, filmando detalhes dos personagens, um filme observador", emenda o carioca Leonardo Bomfim, mestrando em comunicação morando em Porto Alegre, em referência ao documentário do diretor americano que captura Bob Dylan em 1965.

REGISTRO VÍVIDO - Em alguns momentos, a limitação financeira da produção surge na tela, mas isso não interfere em seu encanto justamente pela riqueza das imagens e das falas dos personagens. Há depoimentos divertidíssimos, como Lula contando como pediu Katia (sua mulher na época) em casamento ou o avistamento de elefantes em pleno sertão paraibano.

Em Ingá do Bacamarte, onde se localiza a pedra, os moradores dão versões ingênuas e hilárias para a origem das inscrições. Além da natureza, a música exerce grande força no documentário. O próprio Paêbirú serve de trilhas sonora, mas foram feitas cenas musicais exclusivas.

Em uma delas, Lula e seu tricórdio (espécie de cítara popular marroquina, instrumento que ele dominava e está por todos os quatro lados do LP) acompanham, em espontânea sintonia, Alceu Valença em uma música inédita do compositor de Tropicana e Coração bobo.

Em um dos depoimentos, Lula fala sobre o futuro, a vontade de construir uma nova casa no terreno que ganhara de um amigo. O músico se foi, mas permaneceu seu legado. E com Nas paredes da pedra encantada, permanece também um registro vívido desse incrível personagem da música brasileira.

Assista um teaser do filme:

terça-feira, 10 de maio de 2011

uNIDOS vENCEREMOS?*

Frente relançada no Congresso Nacional reúne políticos e artistas em torno de uma única batalha: lutar por melhores condições para a cultura no Brasil

POR CRISTIANO BASTOS - ROLLING STONE
ILUSTRAÇÃO: LÉZIO JÚNIOR

A produção cultural brasileira, tem "dimensões continentais". É, provavelmente, a mais caudalosa do mundo. Contudo, o domínio da cultura chega historicamente empobrecido ao nosso tempo. Sobram talentos, mas faltam recursos.

E, para agravar, o acesso é restrito. Segundo pesquisa encomendada em 2008 pelo Ministério da Cultura (MinC) ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), a esmagadora maioria dos brasileiros vive excluída das atividades culturais.

Apenas 14% da população vai ao cinema, por exemplo; 93% dos brasileiros nunca foram a uma exposição de arte. Ainda de acordo com o estudo, 90% dos municípios não possuem cinemas, teatros, museus ou centros culturais.

Nos últimos governos, o setor ganhou certa relevância, embora o MinC ainda precise fazer milagre com aquele que é o segundo menor dote orçamentário da União - a Cultura fica atrás apenas do Turismo, a mais empobrecida das pastas ministeriais.

Para 2011, o Congresso Nacional havia aprovado R$ 2,9 bilhões ao setor, porém, com a tesourada da presidente Dilma Rousseff, que cortou R$ 50 bilhões da receita, o recurso encolheu para R$ 1,5 bilhão.

É diante dessa complexa realidade que a Frente Parlamentar Mista da Cultura, relançada em abril no Congresso Nacional, vai se deparar em sua nova magistratura.

Criado em 2007, o colegiado tem caráter suprapartidário e reúne 250 parlamentares e senadores vindos de todos os partidos políticos (tanto do lado do governo quanto da oposição), além de artistas, produtores culturais e representantes da sociedade civil.

Presidida pela deputada fluminense Jandira Feghali (PCdoB/RJ), a Frente da Cultura renasce com o árduo desafio de encaminhar propostas que nortearão as prioridades da área - dentre as quais, temas polêmicos, como a revisão da Lei de Direitos Autorais, a substituição da Lei Rouanet pelo programa Procultura, a criação do "Vale-Cultura" e a preservação do programa Cultura Viva.

De saída, Jandira, ela própria "ex-artista" (na juventude, foi baterista da banda Los Panchos Villa, do irmão Ricardo Feghali, integrante do Roupa Nova), criticou o fato de o segmento deter escassos recursos e, como de praxe, ser o primeiro atingido pelas contingências.

"O pouco dinheiro dado à cultura é um problema crônico, vem de décadas. Da época em que não era prioridade de nenhum governo", ela protesta. A falta de infraestrutura, por sua vez, surge como velho e conhecido contexto: "Não há investimentos significativos há muito tempo".

Leia na íntegra.


sexta-feira, 6 de maio de 2011

nAS pAREDES nA bRASA!



Confira o programa que foi ao ar ontem na MTV onde o diretor Leonardo Bomfim fala sobre o filme Nas Paredes da Pedra Encantada. O programa Na Brasa é apresentado pelo cantor pernambucano China (ex-Sheik Tosado).

quinta-feira, 28 de abril de 2011

fILME iNVESTIGA aS vIAJENS dE pAÊBIRÚ

Disco criado por Zé Ramalho e Lula Cortes em 1974 é o mais raro do país. Brigado com Cortes há anos, Ramalho não quis dar depoimento ao documentário, mas liberou uso das canções

MARCUS PRETO - ILUSTRADA (FOLHA DE S. PAULO)

Mais que um simples road movie, "Nas Paredes da Pedra Encantada", que estreia no sábado, dentro da programação do festival In-Edit, é uma "viagem sobre uma viagem sobre uma viagem". A definição é dos próprios realizadores, Cristiano Bastos e Leonardo Bonfim.

Em busca de investigar a feitura do mitológico álbum "Paêbirú" (1975), de Lula Cortes e Zé Ramalho, a dupla percorreu o interior da Paraíba até a Pedra do Ingá, sítio arqueológico rodeado de lendas que inspirou o trabalho.

Essa é a terceira viagem a que os diretores se referem. A primeira foi a que Cortes (1950-2011) e Ramalho fizeram à mesma pedra em 1974, à procura de inspiração para compor o álbum. Dormiram ali, ao relento, muitas e muitas noites -no filme, Lula fala em 12 visitas ao local.

Aos pés da pedra, os músicos colheram cogumelos alucinógenos, fizeram fogueira, usaram LSD. A segunda viagem é, portanto, psicodélica.

"No projeto original [do filme], Lula queria que todos da equipe tomássemos um LSD puro", diz Cristiano Bastos. "Queria nos levar à Pedra repetindo a experiência na íntegra. Isso, é preciso dizer, acabou não acontecendo."

Criado sob esse clima alucinado, o LP "Paêbirú" acabou por se tornar uma das peças mais importantes do rock psicodélico brasileiro - "legitimamente brasileiro", aliás, como lembra Bastos. "Os caras foram buscar a psicodelia numa lenda indígena, não nos elfos ingleses."

O que deu ainda mais potencial mitológico ao trabalho foi seu trágico destino. Poucos dias depois de ser prensado, ainda no estoque da gravadora Rozenblit, uma inundação destruiu mil das 1.300 cópias existentes.

Isso tudo o torna o vinil mais raro do Brasil, nunca custando menos de R$ 5 mil.

Lula Cortes morreu no começo deste ano. E é em torno dele que o filme gira. Entram em cena também outros envolvidos no álbum, como o fotógrafo Fred Mesel, a capista Kátia Mesel e alguns músicos, como Alceu Valença.

Zé Ramalho, no entanto, não dá depoimento algum. Coautor do álbum em questão, ele não quis ter sua imagem no documentário.

"Ele e Lula estavam com relacionamento cortado há muito tempo", explica Bastos. "Zé me liberou completamente para usar as músicas no filme. Só não queria imagem dele. Que diabos levaram às rusgas dos dois não nos interessou tanto. Não quisemos evidenciar o viés de uma picuinha dentro de uma história tão bonita."

NAS PAREDES DA PEDRA ENCANTADA
DIREÇÃO Cristiano Bastos e Leonardo Bonfim
PRODUÇÃO Brasil
QUANDO sábado, às 19h
ONDE Cine Olido (av. São João, 473, tel. 0/xx/11/3331-8399)
CLASSIFICAÇÃO não informada

segunda-feira, 11 de abril de 2011

dO jEITINHO dELA*

Estilo próprio, rigor e pragmatismo determinam os 100 primeiros dias de Dilma Rousseff na presidência

POR CRISTIANO BASTOS E RODRIGO ALVAREZ - ROLLING STONE
ILUSTRAÇÃO: LÉZIO JÚNIOR

Dilma Rousseff misturou todos os ingredientes da sua "omelete presidencial" direto na frigideira e respondeu à apresentadora Ana Maria Braga sobre as perspectivas do crescimento econômico para seu governo:

"O nosso objetivo é fazer com que a economia continue crescendo de forma estável, sem que a inflação volte".

De repente, ela interrompe a própria fala: "Tô achando que tá muito baixo esse fogo, hein?"

A escolha da primeira aparição da presidente em um programa de televisão voltado ao público feminino não foi por acaso.

Dilma falou sobre sua preocupação com o poder aquisitivo da população conquistado no governo de Luiz Inácio Lula da Silva e mandou uma indireta para quem reclamava do reajuste do salário mínimo para R$545:

"Quando não tem, nós não damos. Quando tem, nós damos. Então, garantimos... Pera lá, dona Ana Maria", ela interrompe. A petista olha para a frigideira, se concentra e termina de preparar o quitute. "Não tá ficando bom, não, porque estou conversando", completou, antes de apagar o fogo.

A apresentadora e o fiel escudeiro, Louro José, enfim provaram a omelete presidencial: adoraram. Os dois atribuíram o "gostinho diferente" ao bicarbonato de sódio que a presidente incorporou à receita - para deixar o prato "mais fofinho", mas que também notoriamente contribui para estufar o estômago.

Dilma assumiu a presidência da República debaixo de chuva forte, desfilando a bordo de um Rolls-Royce fechado. E, no "frigir do ovos", o fato pôde servir como metáfora para o estilo discreto da petista no governo.

Mas, passados 100 dias no comando, aos poucos ela encontra seu jeitinho de cozinhar - ou melhor, de governar. E, é preciso dizer, até agora sem a paternal intromissão de Lula, que não descumpriu a promessa de deixar a sucessora "trabalhar tranquila".

"Rei morto, rei posto", declamou o "ex".

Nesses três meses, a aprovação de Dilma, inclusive, já igualou os índices obtidos por Lula nos primeiros meses de seu último mandato, em 2006. Lembrando também que ela tem pela frente três reformas muito aguardadas: política, tributária e previdenciária.

Sem se deixar levar por frívolas politicagens, a presidente vem surpreendendo por sua capacidade de ser objetiva.

*Mais na Rolling Stone 55, nas bancas!

terça-feira, 5 de abril de 2011

uM pAÍS eM oBRAS

Comissão liderada por ex-presidentes da República tem como missão tornar realidade a prometida reforma do sistema político brasileiro

POR CRISTIANO BASTOS - ROLLING STONE
ILUSTRAÇÃO: LÉZIO JÚNIOR

O ano em que a tão aspirada reforma política deverá descer do púlpito para, enfim, ganhar vida prática no dia-a-dia dos eleitores também celebra uma efeméride que revela o quão sonolenta vem sendo sua realização.

De acordo com estudo feito pela Câmara dos Deputados, desde 1991, foram recebidas 283 propostas de alteração do sistema político, entre projetos de lei e tentativas de emenda à Constituição.

A análise de tais propostas arrasta-se, portanto, em legislaturas que somam 20 anos.

Atraso que, sobretudo, se deve à "falta de consenso" nos debates do Congresso Nacional. Para o eleitor, o processo deverá trazer maior correspondência entre duas pontas: sua vontade na hora de votar e o resultado final nas urnas.

Apesar de tardia, a reforma política é festejada como "mãe de todas as reformas". Reformaria, antes de tudo, os próprios reformadores. Razão que, por outro lado, explica sua lentidão em acontecer de fato.

Todavia, prósperos ventos sopram a favor da reforma política com o fôlego de um Congresso renovado e o apoio dos chefes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

A presidenta da República, Dilma Rousseff, e o presidente do Senado Federal, José Sarney, elegeram a reforma como prioridade em seus mandatos.

A "vassourada" inaugural foi dada pelo Senado, que, em fevereiro, instalou a Comissão de Reforma Política, que nasce com o desafio de cimentar um consenso até hoje não encontrado sobre as propostas em debate.

A "comissão de frente" da reforma, escolhida a dedo pelo próprio Sarney, conta com a vivência política de oito ex-governadores e dois ex-presidentes - os atuais senadores Fernando Collor de Mello (PTB/ AL) e Itamar Franco (PPS/MG).

Presidido por Francisco Dornelles (PP/RJ), o colegiado também é integrado por senadores como Aécio Neves (PSDB-MG), Demóstenes Torres (DEM-GO) e Roberto Requião (PMDB-PR).

Na escalação do "time feminino", estão as senadoras Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), Lúcia Vânia (PSDB-GO) e Ana Rita Esgário (PT-ES).

Sarney justificou que seu critério de escolha fundou-se puramente em "experiência política".

"É primordial que todos os membros da comissão deixem de fazer as contas sobre o que é melhor para seu partido e para seu projeto pessoal e pensem no que é melhor para o Brasil", define Aécio Neves, que também defende o fim das coligações partidárias.

De acordo com o senador tucano, esse parece ser um ponto comum entre os parlamentares.

"Até porque esse é um sistema que desfigura o processo representativo. Ou seja, quando um eleitor vota num determinado candidato e elege um candidato de um partido que atuará de forma absolutamente distinta daquele no qual ele votou."

Na primeira reunião da comissão, 11 temas receberam o selo "prioritário" - entre eles, sistema eleitoral, financiamento de campanha, regras para coligações entre partidos, fidelidade partidária, voto facultativo e reeleição.

O mais fundamental dos desafios, ponderou Sarney, no entanto, será encontrar um modelo alternativo à atual forma de eleição de deputados e vereadores.

Ele sugere a adoção de uma fórmula mista. Ou seja, que combine votação majoritária (na qual o mais votado é eleito) com a proporcional (votos obtidos pelo partido ou coligação, os quais determinariam o resultado).

"A mudança no sistema proporcional resolveria cerca de 60% do problema", contabiliza Sarney.

Agora, a missão do colegiado, no prazo de 45 dias, é apresentar à sociedade um anteprojeto de reforma política.

O ex-presidente Fernando Collor de Mello deixou a presidência da Comissão de Infraestrutura – e na qual, curiosamente, deu lugar ao seu algoz nos tempos de "Fora Collor!", o senador Lindberg Farias (PT-RJ) –, para encabeçar a atual comissão.

Collor pretende reavivar no Brasil o debate sobre a instituição do sistema parlamentarista de governo - de sua autoria, inclusive, há uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 31/07). O senador também se declara favorável a questões como financiamento público e redução dos custos de campanha e fidelidade partidária: "São todas medidas parlamentaristas", diz Collor.

O senador Itamar Franco, por sua vez, defende o fim da reeleição para cargos majoritários, a exemplo do cargo de Presidente da República.

De acordo com Franco, presidente da República de 1992 a 1994, o pressuposto da reeleição atenta contra a ordem constitucional brasileira. Ele também critica os partidos políticos, os quais chama de "estrutura viciada" onde "quatro ou cinco dirigentes mandam".

"Uma hora alguém não gosta mais de sua cara ou de sua atuação e você perde totalmente o espaço. É um absurdo", diz, com indisfarçável sinceridade.

Essa não é a primeira vez (nem deverá ser a última) que ocorrerá uma reforma política no sistema político brasileiro. Nessas duas décadas, desde que a ideia começou ser debatida, alguns avanços surtiram efeito.

Até agora, a maior conquista foi a moralizadora "Lei da Ficha Limpa", cuja aprovação contou com as redes sociais da internet como grande aliada. Os cientistas políticos, contudo, mostram-se descrentes quanto à prioridade que a reforma terá na agenda dos dirigentes da Nação.

Na avaliação de especialistas, desde 1988 (quando a Assembléia Nacional Constituinte consolidou a recém implantada democracia brasileira), o Brasil inegavelmente progrediu em muitos campos – em especial, no social e no econômico.

Politicamente, porém, o País estancou.

O vigente sistema eleitoral é, inclusive, condenado pelos eleitores, que fazem suas escolhas pessoais, mas, de maneira geral, ficam surpresos com o resultado final das votações.

A despeito dessa desconfiança, a turma de senadores que engrossa a Comissão da Reforma Política jura que não costurará apenas "remendos normativos": eles prometem a inteira renovação do sistema político brasileiro.

Porém, no entendimento de Octaviano Nogueira, cientista político da Universidade de Brasília (UnB), os políticos farão somente o que sempre fizeram: proselitismo em causa própria. "Vão fazer um remendo aqui e outro ali, para atender a interesses particulares. Mas não vão mudar o sistema".

Como essencial pilar da reforma, Nogueira cita o voto facultativo – o qual, assim como nas grandes democracias – deveria deixar de ser obrigatório: "Isso, sim, seria 'reforma política', pois diria respeito aos interesses do cidadão", ilustra.

Em sua estreia no Congresso Nacional, Dilma Rousseff voltou a reforçar que a reforma política, que não caminhou nos oito anos do governo Lula, é uma de suas prioridades. Em plenário, entretanto, a presidenta arrancou risos da plateia quando anunciou que trabalhará "em conjunto com a agenda do Congresso" para garantir o andamento do processo.

Dilma se diz, por exemplo, contra as doações ocultas em campanhas eleitorais (quando empresas privadas doam recursos sem identificarem-se na prestação de contas). "Sou a favor de doações explícitas e transparentes", ela diz.

"Os eleitores têm direito de saber quem doou para quem."

Já José Serra, adversário de Dilma em 2010, defende que os candidatos "apresentem-se como são".

Uma das bandeiras hasteadas pelo candidato derrotado à presidência trata do fim daqueles que ele apelida de "candidatos-sabonete", ou, em suas próprias palavras, "políticos vendidos como se fossem novos produtos de consumo".

Conforme dados da ONG Reforma Política Já, cada pleito eleitoral custa aos cofres públicos por volta de R$ 900 milhões. Segundo estudo de 2008 da mesma instituição, 20% dos deputados (estaduais e federais) abandonou suas atividades para dedicar-se exclusivamente a campanhas para prefeituras (aqueles que não se elegeram, posteriormente retornaram ao conforto dos antigos cargos).

Diante da explícita "balbúrdia pública", o efeito mais desejado da reforma política é, sem dúvida, o moralizador. O anseio por mudanças é grande e extravasa as cercanias da Esplanada dos Ministérios. Engajados no "Movimento Reforma Política Já", enfileiram-se artistas como o ator Milton Gonçalves, a atriz Débora Falabella, a banda Jota Quest e o cartunista Ziraldo.

Gonçalves, um dos mais engajados, defende que reformar seria uma das maneiras mais eficientes para reverter a corrupção que assola o Brasil. "Ninguém deve ficar de fora. Precisamos da participação de toda a sociedade", decreta o ator.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), igualmente, é uma das maiores apoiadoras da necessidade da reforma. Dom Geraldo Lyrio Rocha, presidente da CNBB, opina que a mudança não pode ocorrer somente dentro gabinetes: "A vontade do povo, sobretudo, deve ser levada em consideração. A Reforma Política é uma 'dívida' que o Congresso tem para com o Brasil".

Um dos pontos mais polêmicos da reforma política é a adoção do sistema majoritário para a eleição de deputados, medida que findaria com os chamados "puxadores de votos".

Tanto que a proposta, irônica e apropriadamente, ganhou apelido de "Lei Tiririca": ela impediria a repetição do fenômeno provocado pela eleição do deputado federal que recebeu 1,35 milhão de votos e, tal qual um "milagre da multiplicação", ajudou a eleger candidatos bem menos votados.

A "Lei Tiririca" tornaria inúteis as coligações partidárias nas eleições proporcionais e, de quebra, geraria imediato efeito colateral.

Há quem não acredite, porém, na remissão do sistema. No livro Nervos de Aço, franco raio-x da política brasileira, o ex-deputado Roberto Jefferson (denunciante e confesso agente do "mensalão") escreveu:

"O sistema político brasileiro é um círculo vicioso sem fim. Rouba-se para financiar campanhas eleitorais e conservar-se no poder".

"O que fazer para viabilizar uma reforma que afeta tantos interesses, inclusive os dos próprios parlamentares?", questiona a ex-senadora e ex-candidata a presidente Marina Silva (PV/AC).

Ela pontua que o Brasil precisa de um "realinhamento histórico", pois "só assim a reforma política sairá do papel". Assim, a tão desejada reforma independeria de políticos e poderia ser iniciada pelas escolhas feitas pelos próprios eleitores.

Dentre as quais, Marina sugere eleger parlamentares minimamente comprometidos com outras reformas importantes, como a tributária e a da previdência.

"As pessoas não devem escolher um representante esperando que ele vá se transformar em 'príncipe encantado' da noite para o dia. Também não adianta ficar beijando o 'sapo' na boca para ver se vira príncipe. Não dá certo", ela metaforiza, citando em seguida qual seria a "única saída" para o eleitor:

"Escolher o candidato certo. E, sem preconceito com o sapo, que sou ambientalista."

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